“Ao princípio era o caos” (Hesíodo)
Há mais de quarenta anos, estávamos no pós-25 de Abril e a situação no ensino em Portugal atravessava momentos difíceis. Um grande número de professores não tinha qualquer tipo de formação pedagógica ou didáctica. Ainda não existiam os estágios dos cursos universitários via de ensino que só viriam à luz do dia em meados da década de oitenta.
Embora já fosse usada a figura do concurso, um grande número de docentes era recrutado directamente com base na sua formação académica, na maior parte das vezes, de grau não superior. Nada de currículos vitae. Mercê da adopção do princípio da escolaridade obrigatória até ao terceiro ciclo do então chamado ensino unificado, deu-se equivalentel boom na procura de professores.
A organização das escolas viu-se a braços com muitos problemas. Havia falta de meios humanos e materiais e não havia recursos financeiros suficientes para lhes fazer frente, nem estratégias que o essencial resolvessem. Escolas mal dimensionadas, uma rede escolar improvisada e desadequada, a falta de uma rede de transportes condicente com as realidades, os problemas de preparação, já assumidos, dos professores e dos próprios responsáveis pela educação campeavam. Cedo os ministérios se centralizaram e burocratizaram e algumas inspirações políticas “minaram” os ambientes.
Com a viragem tendencialmente “recuperadora” de concepções “moderadas” operada no 25 de Novembro, os problemas não se resolveram e houve alguns que se agravaram. Os sucessivos governos que se seguiram não deram conta do recado. Uma das chagas mais dolorosas que então nascia prende-se com a monstruosa “mobilidade” a que os professores passariam a estar sujeitos durante anos e anos Os professores passaram a ser subjugados pelo salário e pela miragem de um lugar do quadro que os trouxesse de volta a, pelo menos, uma distância de cinquenta quilómetros da sua casa e da família.
Nestas condições de precariedade, em que nunca se sabia se no ano seguinte haveria emprego, os alunos e as famílias também viviam na incerteza. As escolas ficaram privadas da ideia de terem um projecto. Escolas e professores pouco sabiam do futuro. Nestas circunstâncias, vingou a lei da administração imediatista, de curtas vistas e, mais uma vez, dependente da boa vontade dos docentes que começavam a dar sinais de cansaço mas que, apesar de tudo, voltavam a agarrar o barco. Nestes contextos, ninguém daria por falta do ministério se ele nos faltasse. Este, por vezes, só atrapalhava, para sermos claros. Já não valia a pena exigir dos governos reprografias, papel, giz, refeitórios capazes, laboratórios e pavilhões gimnodesportivos. Como fazem hoje com a marmita, os professores iam trazendo de casa aquilo que podiam e que fazia falta para ensinar a malta.
Os anos oitenta distinguiram-se por algumas boas reformas. A falta de formação inicial foi colmatada com o aparecimento e bons resultados da chamada profissionalização em exercício, percursora , até há 25 anos, da desconhecida formação contínua. Esta reganhou os professores para o entusiasmo e para o progresso educativo e têm tido nos Centros de Formação das Associações de Escolas os seus principais dinamizadores. Bem hajam membros e directores dos Centros referidos. Professores, afinal.
Voltando à História, refira-se um marco importante na luta docente e sindical pela dignificação da classe. Falamos daquela que foi, provavelmente até hoje, a maior vitória dos professores: a aprovação do seu Estatuto da Carreira. Com este documento, a classe autonomizou-se da função pública e adquiriu o perfil de “especial”. Falta o reconhecimento das consequências todas dessa individualidade. É preciso reconhecer que a profissão é de desgaste rápido e, consequentemente, exige-se antecipação da idade da Reforma.
De resto, nunca tivemos razões de queixa da sociedade, mau grado algumas pequenas incompreensões de parte a parte. O que une os professores e as famílias é mais forte do que aquilo que os separa. O seu elo de ligação é comum: os alunos.
A gestão das escolas, conceito para além do órgão directivo, tem conhecido indecisões, imprecisões e tem, por vezes laborado excessivamente no erro de encarar os outros como só de um se tratasse. Exige-se sem dúvida uma gestão amiga do ambiente escolar, criativa, motivadora e justa. Respeitar a diferença, valorizar aquilo que cada um de nós tem de melhor. Neste sentido, faz sentido falar-se de gestão democrática.
Finalmente, uma palavra para a política “lato senso”. As constantes alterações nas orientações e medidas a que os sucessivos ministérios têm submetido as escolas e o ensino, conforme os governos se alternam no poder, bem como uma certa falta de ideias originais, coerentes e relacionadas logicamente não tem favorecido a construção de uma matriz sólida, séria e justificada.Pelo contrário, têm sido progenitoras de ziguezagues e certas importações apressadas do estrangeiro. Por vezes, fica-se com a ideia que certas intervenções ou propostas são para cumprir agenda política ou manifestam uma vontade de “aparecer” na praça dos media. A política educativa não pode ser exclusiva dos governos. Há muita gente interessada nas coisas públicas e que, tendo opinião, tem o dever cívico da participação. Políticos de carreira têm que partilhar o espaço. Senão, onde está a democracia?
Quando se lê um documento do actual ME ,que é uma grande seca, graças a Deus, onde se procura explicar os princípios e as formas de implementação e “acompanhamento” do processo de flexibilização curricular, não encontramos referência que valha a pena sobre a hipotética intervenção dos professores. Lá, dá-se muito mais importância aos alunos, por exemplo. Para além de uma panóplia de comissões maiores e menores que definem, prescrevem,fiscalizam, propõem, avaliam e por aí fora…não se vislumbra onde é que entram os professores. Se, por lapso, não topei com o assunto da pesquisa peço, desde já, desculpa. Uma coisa é certa, esta natureza burocrática e impositiva é familiar do “esquecimento” em relação aos docentes. E só pode significar o seguinte: o ME não confia nos professores. Avalia-os negativamente. Existe um preconceito, talvez, de que os professores são “resistentes” à mudança e, portanto, não há que contar com eles. Ou estarei enganado?
A natureza puramente administrativa, burocrática, razoavelmente autoritária e segregadora dos professores fez-me lembrar as sábias palavras do Sr. Engenheiro Roberto Carneiro que, numa entrevista dada, após ter deixado o Ministério da Educação do qual foi ministro nos confidenciou sem pedir segredo: “O Ministério da Educação é mastodôntico e ingovernável”. Quem sabe, sabe. Como ainda não passaram senão 25 anos desde esta declaração, presume-se que tudo continua na mesma. Há duas dezenas de anos, o ME era uma quinta onde proliferavavam os lobbies, os amigosdequemestánopoder,os professores destacados – leia-se os que não queriam dar aulas - os directores, os sub-directores, os assessores, os convidados para emitir pareceres, os mangas de alpaca, enfim tudo o que come do orçamento. Enquanto isso, bombardeavam as escolas, os professores e outros inocentes com decretos, despachos, circulares, esclarecimentos, interpretações, tudo coisas muito úteis à educação!
Apesar disto tudo, e mercê do honroso trabalho feito pelos actores do sistema de ensino, professores à cabeça, o estado da educação em Portugal já não é o que foi. Muita coisa mudou, ou está a mudar, mas não à custa da acção dos governantes, como se procurou demonstrar no artigo Professores - contornos da razão. Quando passa mais um aniversário do 25 de Abril, olhamos para trás e vislumbramos uma estrada sinuosa mas calcorreada. No entantanto, há muito caminho pela frente. Este faz-se caminhando. A educação faz parte de uma realidade global onde se cruzam professores, alunos e pais. Da sociedade, espera-se um contributo. Quanto mais rica e instruída, melhores jovens e crianças teremos. Ao invés, melhores alunos, melhor sociedade Uma melhor sociedade e melhores alunos exigem melhores professores e melhor escola. É a dialética das coisas.
Se o poder político estiver genuinamente interessado em fazer parte da solução para termos melhor escola, avance. Nós não guardamos rancor pela insansatez de certos comportamentos desviantes.
Em primeiro lugar, há que considerar os professores como o núcleo duro do sistema educativo, protegendo-os do desgaste a que têm sido sujeitos e dar-lhes condições de trabalho e de vida.
Em segundo lugar, pense-se em promover o ajustamento fundamentado dos currículos e não simplificar ou banalizar o assunto recorrendo, para tal, a um diagnóstico competente da actual situação.
Em terceiro lugar, há que intensificar a formação contínua depois de se decidir o que se quer fazer com ela.
Em quarto lugar, renove-se a classe docente tão desgastada e envelhecida. Reformas mais cedo (sendo que, primeiro, tem que haver o reposicionamento nos escalões a que os professores têm direito, permitindo atingir o topo imediatamente antes do acto da aposentação por limite de idade).
Em quinto lugar, convidem-se os professores aposentados a permanecer nas escolas de origem, desempenhando funções não docentes como, por exemplo, apoio e aconselhamento dos colegas mais novos. Não se atirem os mais velhos para os lares. O prolongamento de actividade induz qualidade de vida e promove longevidade. Não nos importemos com as já esperadas objecções do ministro da Segurança social. O nível civilizacional de uma sociedade mede-se pela forma como trata as crianças, os jovens e os seus "velhos".
Finalmente, acabe-se já com a carga de trabalhos a que os professores são sujeitos para além do serviço docente. Não às tarefas administrativas, burocráticas e inúteis. Não afoguem os profissionais de ensino em papéis e não os baralhem, não os ponham a andar aos papéis. Não os cansem de propósito para que se tornem acríticos. Deixem os professores em paz, deixem-nos dar aulas.
A escola pública e o ensino obrigatório tiveram um parto difícil que deixou algumas sequelas. A responsabilidade não é do 25 de Abril. Foi de quem o estragou e do legado de 40 anos de escuridão e do aprendizado turbulento mas generoso do exercício da Liberdade. É preciso que os jovens de hoje e de sempre saibam reconhecer a importância histórica da Revolução dos cravos e aproveitem as lições do “sacrifício” dos seus pais e avós para serem melhores amanhã.
As novas gerações já dão o exemplo. Os nossos jovens professores e os nossos miúdos podem não ter uma ligação emocional ao 25 de Abril mas têm sabido, por outros caminhos, construír conhecimento , bem estar e liberdade. Os últimos resultados dos testes do PISA da OCDE colocam Portugal no meio da tabela dos vários saberes para a vida num total de 72 países. Só não somos dos melhores devido ao elevado índice de reprovações. Os nossos jovens justificaram em Literacia Científica, Leitura e Matemática o honroso lugar que ocupam. Atrás de nós ficaram países como Itália, Espanha, Luxemburgo, Israel, República Checa e até os Estados Unidos (estes em todos os domínios). Ou seja, não tarda que estejamos em condições de “exportar” educação (passe a brincadeira). Já ajudámos Timor, e bem.
Agora só nos resta continuar a andar e reprovar menos. Há um caminho a fazer nas metodologias de ensino e na avaliação.
P.S.
O sr. Ministro da educação, numa entrevista dada ao Expresso de 21 de Abril de 2018, critica Nuno Crato por este ter feito uma “revolução” curricular, durante o seu reinado, sem ter ouvido a sociedade e as escolas, exactamente por não ter necessidade de o fazer, pois tinha maioria absoluta. Na citada entrevista, o actual ministro vem sugerir que não é igual a Crato e que vai lançar algumas ideias sobre “flexibilização” em discussão pública, se bem entendi, até ao final do mês. Pensa-se que se esteja a referir a este Abril em que estamos. Ou seja, o sr. Ministro dá menos de dez dias para discussão. Devo ter interpretado mal ou a jornalista fez confusão. A coisa é ridícula, se não fosse séria. Das duas, uma. Ou o sr ministro presume que ninguém tem ideias sobre o assunto dos currículos, ou está a contar, em antecipação, com os contributos dos seus conselheiros que têm o material todo prontinho nas gavetas para promover uma "discussão" em tempo recorde.
Seja como fôr, a coisa não deve ser levada a peito. Trata-se, a julgar pela entrevista, de uma proposta minimalista: mais educação física, mais expressão artística. Pronto. Dez dias são mais que suficientes para dizer ámen ao ministro. A este propósito, não dispenso o recurso a uma anedota que fiz questão de contar em oraviva.blogs.sapo.pt no post O rigor o resto e o nada: António Sérgio conta nos seus Ensaios o seguinte episódio: um revisor de texto, encarregado de passar a pente fino, os conteúdos de um dicionário destinado a publicação, deteve-se na entrada caranguejo à frente do qual o autor tinha escrito só isto: peixe vermelho que anda às arrecuas. O revisor escreveu à margem: não é peixe, não é vermelho, não anda às arrecuas. O resto está certo. O resto, sr. Ministro, o resto.
Como este artigo já vai longo, declaro não ter mais nada a dizer ao sr. Ministro. Nem hoje, nem até ao fim do mês. A paciência dos leitores e a minha têm limites.