Musicas de sempre (55)
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Há anos, um reputado psiquiatra e conferencista que também fazia uns biscates crónicos (de cronista) escrevia periodicamente uns artigos . A certa altura iniciou a publicação de umas crónicas a que dava o sugestivo título de Aturai-vos uns aos outros . O título não andava longe da apologia do bom senso, da compreensão e da tolerância entre as pessoas.
Tudo bem. Cada um deve respeitar e acudir às limitações dos seus semelhantes partindo do princípio que este não é um mundo perfeito e requere-se moderação comportamental para suportar a diferença. Devemos, sim, ser pacientes com o outro e seguir o princípio kantiano que reza assim: não faças aos outros aquilo que não queres que os outros te façam a ti .
Nunca se percebeu se o cronista defendia a ética e a moral de Kant ou a moralidade cristã - pois não são exactamente a mesma coisa. Por mim, que deixei cedo os templos, não sou perverso ao ponto de suportar as asneiras do próximo sobretudo quando conscientes e deliberadas.
Assim, um dia em que dei por mim mais pachorrento, peguei no lápis (que era tudo menos azul) que estava sobre o jornal aberto numa das crónicas do altruísta e rabisquei um outro título destinado a abrir uma pequena crítica em forma de texto que viria a ser publicado. Chamei a esse texto formatado de crítica da crítica: Atirai-vos uns aos outros.
Esta resposta não era um apelo à violência, à desordem, ou tão pouco a qualquer motim ou guerra - quem sou eu? Na verdade não passo de um pacifista militante e há muito que abandonei a ideia de revolução. Escrevi o tal artigo debaixo do tecto da ironia. Era um contraponto a ideologias neoliberais ou esquerdismos desbotados pelas lavagens das direitas. O meu pequeno texto argumentava que não nos devemos amar e suportar uns aos outros esquecendo as taras e perversões que viciam a nossa sociedade.
Enviei uma cópia de atirai-vos uns aos outros ao famoso psiquiatra e cronista que nunca acusou a sua recepção. Provavelmente, deve ter-me catalogado com uma deficiência qualquer do seu foro e, por isso, ter-se-á sentido confortável e seguro de me ter diagnosticado como inimputável. E, se calhar, sou. Ou não?
O médico abandonou, creio, os seu conselhos para nos aturarmos uns aos outros e eu continuo a defender a ideia que as boas pessoas se devem atirar às más. Para o bem de todos. Era assim na cidade de Atenas. É-o nas democracias a valer.
Por entre as gentes que se apinham nos comboios que rolam entre o Oriente e Sintra há cheiros de suor queimado pela labuta diária em Lisboa. No regresso das longas carruagens aos subúrbios, uma mescla étnica e muitos jovens e bastantes pessoas de meia idade provocam um burburinho cruzado. Não ouvirão tais sons a maior parte das pessoas que viajam sonolentas, indiferentes e cansadas. É no regresso à suburbanidade que se chocam personalidades diversas, que se boceja e se teclam sem cessar telemóveis.
Não se conversa, que a palavra está cara. Não há pachorra para aturar o vizinho do lado. Aqui e ali, paragem sob controlo, passa-se pelas brasas. Nas paragens mais afeitas para os sítios onde espera a mesa e a cama, e escolhidas para habitar a preços módicos africanos como Amadora, Reboleira, Cacém ou Rio de Mouro, assiste-se ao abandono do comboio em enxurradas densas. O carro de ferro, indiferente à debandada das gentes , volta a anunciar uma nova descida para breve. Assim, quase não sobram utentes para descer no Algueirão ou em Sintra. Só nós iremos até ao fim da linha!
O comboio vazio torna-se vazio de facto. Restam lembranças das gentes que nunca tinhamos visto, olhámos e sentimos. Talvez que iremos ver-nos por aí. Até breve, comboio da linha de Sintra.
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